Além dela, Defensoria Pública de SP recebeu 33 denúncias contra PMs.
Moradores relatam ação do 'bonde do careca' de policiais em Paraisópolis.
Antes vaidosa e independente, a estudante Dayane de Oliveira, de 17
anos, diz que uma bala de borracha disparada por um policial militar em
uma viela de Paraisópolis, favela da Zona Sul de São Paulo, mudou sua
vida. No começo deste ano, a adolescente perdeu o olho esquerdo depois
de um tumulto em um bar na Rua Melchior Giola.
Dayane atualmente prefere ficar na casa sem número onde mora com os pais
e irmãos, numa das centenas de vielas da favela de Paraisópolis.
Questionada sobre qual é seu maior desejo, respondeu sem titubear:
"Queria ter meu olho de volta".
Seu caso é um dos 34 denunciados de abuso policial reunidos pela
Defensoria Pública desde que a PM ocupou a comunidade, no fim de outubro
de 2012, durante a onda de violência entre policiais militares e
criminosos.
O incidente foi registrado no 89º Distrito Policial, Portal do Morumbi
(Zona Sul de SP), como lesão corporal. Procurada para comentar o
assunto, a PM informou por meio de nota que também apura a denúncia
feita pela garota e por outros moradores.
As queixas dos moradores começaram em novembro passado, mas
intensificaram-se em janeiro e fevereiro de 2013. A maioria é de
agressão verbal e física, incluindo o uso de bombas de gás lacrimogêneo e
de efeito moral e disparos com bala de borracha para dispersar grupos.
Foi o que aconteceu com Dayane em 12 de janeiro.
Segundo a adolescente contou ao G1, por volta das 3h ela se divertia com
o namorado e o irmão mais velho em um bar quando viu um carro da PM
parar. Ela afirma que policiais desceram e mandaram o grupo sair do
local. Para apressar, eles jogaram bombas de gás.
A PM informou, em nota, que na ocasião "os policiais militares foram
acionados para atender ocorrência de perturbação do sossego, originada
em baile funk em via pública (pancadão)". Os policiais alegam, segundo a
assessoria da corporação, que "os participantes se negaram a ser
socorridos ou auxiliados".
Na correria, parte do grupo se refugiou em uma viela. Temendo ser
pisoteada, Dayane foi para outro beco. "Eu olhei para baixo e vi as
bombas caindo perto de mim. Quando levantei o rosto, senti uma pancada
forte", disse.
Percebendo o vestido ensanguentado, a jovem inicialmente pensou que
tinha sido baleada no corpo. "Procurei a marca da bala, mas não
encontrava. Daí reparei que as pessoas olhavam para o meu rosto de um
jeito estranho." O irmão e o namorado de Dayane a encontraram ferida e
levaram a jovem a um posto de saúde próximo. Por conta da gravidade do
ferimento, foi transferida para o Hospital das Clínicas, que recebeu a
informação da jovem que ela foi atingida por uma bala de borracha.
Exames médicos apontaram que o impacto do projétil, além de destruir seu
globo ocular, causou fraturas complexas no lado esquerdo do rosto. Duas
de oito cirurgias previstas já foram feitas. A expectativa é a de que o
tratamento seja demorado e que leve anos até que Dayane possa colocar
uma prótese.
Por causa da deficiência, a adolescente hoje em dia sai pouco de casa.
Quando isso acontece, ela precisa estar acompanhada.de parentes ou
amigos. "Às vezes eu não vejo os carros passarem. Tenho medo que me
atropelem." Além disso, ela disse que, desde que foi atingida, fica em
pânico ao passar por policiais. "Só de ver, eu começo a tremer inteira."
O incidente também atrapalhou seus planos profissionais. Desde que o
globo ocular foi retirado, ela deixou de trabalhar como faxineira e
abandonou os estudos por temer ser vítima de bullying.
Depois do tiro, a família de Dayane se esforça para tornar a vida da
jovem mais confortável. O tratamento é caro. Segundo a empregada
doméstica Maria Iracema de Oliveira, de 43 anos, entre gazes, colírios,
pomadas e antiinflamatórios, para o rosto da filha e ansiolíticos para
controlar seus medos já foram gastos mais de R$ 6 mil.
A mulher afirmou ter mais motivos para temer policiais. Em fevereiro de
2012, um de seus quatro filhos, Marcos de Oliveira, conhecido como Mike,
foi morto a tiros por policiais em uma viela. A família disse que o
jovem, que fumava maconha com um amigo, assustou-se com a chegada dos
PMs, correu e foi atingido. A corporação alegou que os agentes foram
recebidos a tiros e reagiram, atingindo o jovem e seu amigo. O outro
rapaz sobreviveu.
Questionada se teme denunciar policiais que atuam na favela, a mãe de
Dayane disse não ter nada a perder. "Destruíram a vida do meu filho,
acabaram com a vida da minha filha. Agora só quero justiça. Tenho sede
de justiça."
Defensoria Pública
O caso da adolescente chegou ao conhecimento da Defensoria Pública após
moradores de Paraisópolis se mobilizarem e procurarem ONGs para
denunciar a ação dos policiais militares. Além do caso, defensores do
Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos receberam 33 outras denúncias
contra a Polícia Militar.
São reclamações de invasões a domicílio, ameaças, agressões físicas e
verbais, revistas constantes, toques de recolher no comércio e nas ruas,
furtos e roubos. A maioria relata que os abusos de autoridade são
praticados pelo "bonde do careca", grupo formado por PMs que raspam a
cabeça.
A defensora Daniela Skromov disse ter levado os relatos ao conhecimento
da Secretaria da Segurança Pública (SSP) em março. Com medo de
represálias, os denunciantes não se identificaram. "Logo que procuramos a
SSP, a Corregedoria da PM foi acionada. Eles queriam telefone da menina
para fazer reconhecimento, mas ela estava abalada e não quis falar
naquela ocasião", disse Daniela sobre o caso de Dayane.
A respeito das outras denúncias, a procuradora afirmou que ainda não foi
procurada por nenhum órgão policial para ajudar na identificação das
vítimas. "O documento foi levado para SSP, onde pedimos providências no
sentido de instaurar uma investigação propesctiva, métodos
investigativos para acompanhar esses policiais porque tudo indica que
novas violações ocorrerão. A Polícia Civil e a Polícia Militar poderiam
apurar essas denúncias, mas ainda não houve resposta".
Questionada sobre a ocorrência envolvendo Dayane, a PM afirma que "foi
instaurado Inquérito Policial Militar para apurar responsabilidades, que
já foi relatado e enviado à Justiça Militar Estadual". O comunicado
acrescenta que o "Inquérito Policial Militar apura que tipo de armamento
foi utilizado". A PM ainda se posicionou a respeito das mais de 30
denúncias informando que "todos os casos relacionados com a Favela de
Paraisópolis no período estão incluídos no Inquérito Policial Militar,
ora em andamento."
A Polícia Civil instaurou inquérito número 224/2013 para investigar o
crime de lesão corporal dolosa contra Dayane. O caso é apurado pelo 89º
Distrito Policial, no Portal do Morumbi, Zona Sul. A vítima, o irmão que
estava com ela e a mãe foram ouvidos. A adolescente relatou que uma
bala de borracha atirada por um policial acertou seu olho. Ela, no
entanto, não sabe identificar o PM. Ainda faltam os depoimentos dos
policias militares envolvidos. Também são aguardados os resultados dos
exames do Instituto Médico Legal (IML) sobre a gravidade da lesão no
rosto da garota.
Outras denúncias
As denúncias se intensificaram após a PM ocupar Paraisópolis em 29 de
outubro de 2012, alegando que dali partiram os atentados para assassinar
policiais militares. As ordens foram dadas por presos de uma facção
criminosa que age dentro e fora dos presídios paulistas. O motivo:
vingar a morte de seis suspeitos pelas Rondas Ostensivas Tobias de
Aguiar (Rota) em 28 de maio, na capital. Eles estavam reunidos no
estacionamento de um bar na favela Tiquatira, na região da Penha, Zona
Leste. Em junho daquele mesmo ano, como represália, 11 policiais foram
assassinados.
Pouco tempo depois da ocupação, moradores fizeram duas denúncias contra
PMs: uma tratava da agressão de "um menino de 10 anos só porque correu" e
outra, de um homem que levou tapas na cabeça de policiais estavam
procurando um suspeito de roubo de carros. Há relatos ainda de que a PM
tenha agido com violência para impedir bailes noturnos nas ruas da
favela, jogando bombas de gás, segundo os moradores.
Trinta e uma denúncias ocorreram em janeiro e fevereiro. Entre elas
estão relatos da ação de um grupo violento formado por policiais
militares, chamado "bonde do careca". "Careca" seria um PM responsável
por coordenar os policiais nas incursões à favela. Em apoio ao colega
para dificultar a identificação dos policiais, os agentes rasparam a
cabeça e deixaram de usar o nome no uniforme. "Os policiais jogam bomba
de pimenta dentro de casa. Um menino de 3 anos ficou sufocado", afirma
uma denúncia de 17 de fevereiro.
Segundo a pesquisadora Marisa Feffermann, doutora em psicologia e membro
da ONG Tribunal Popular, uma rede de movimentos sociais independentes
foi mobilizada para colher essas denúncias. Para a especialista, a
repressão aos pobres não ocorre apenas em Paraisópolis e é recorrente.
"No Brasil, a vítima é considerada algoz. Enquanto o algoz está livre, a
vítima permanece presa, com medo de sair de casa."
Assista ao vídeo no Portal G1
Fonte:
Portal G1